sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Público: Quando é preciso dar um empurrão à cegonha

O jogo da agulha dizia que Ana Sofia Caniço, 34 anos, iria ter quatro rapazes e duas raparigas. Ana ria-se. Imaginava-se a ser mãe desde que se lembra de brincar com bonecas.

Mas seis filhos estava claramente acima do que alguma vez poderia imaginar. Foi um ano depois de estar casada, ainda com 26 anos, que começou a tentar engravidar. Passados oito anos está grávida de 23 semanas de um segundo filho, que na prática é um oitavo. Ana tem um problema de infertilidade e já passou por vários abortos. Hoje tem cá a Mariana com dois anos e meio e o Rodrigo parece estar a portar-se bem na barriga. Mas diz que ainda lhe parece tudo “um bocadinho irreal”. “Cheguei a questionar se algum dia teria um filho nos braços.” Agora tem. Mas isso não apaga a doença que já lhe levou seis bebés. Não impede esta psicóloga educacional de se lembrar da idade que teria cada filho, em que mês deveriam ter nascido, o que estariam agora a fazer na escola.

Não há números oficiais, mas as estimativas da Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução apontam para que existam em Portugal cerca de 500 mil casais inférteis em idade reprodutiva, ou seja, perto de 9% dos casais. Um número que se tem vindo a agravar nas últimas décadas, também devido ao adiar da maternidade. “Considera-se que estamos perante um problema de infertilidade quando não há uma gravidez ao final de 12 meses de tentativas numa vida de relações sexuais regulares e sem contraceptivos”, resume Carlos Calhaz Jorge, responsável pela Unidade de Medicina de Reprodução do Centro Hospitalar Lisboa Norte – Hospital de Santa Maria e também membro da Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução.

Contudo, apesar de haver um número cada vez maior de pessoas a precisar de dar um empurrão à chegada da cegonha, o último relatório do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, divulgado em Setembro, indica que em 2010 cerca de 2,2% dos nascimentos em Portugal resultaram de técnicas de procriação medicamente assistida – quando a média europeia ultrapassa os 3% e nos países nórdicos chega aos 5%. Mesmo assim, os dados representam um aumento de 35,5 % de recém-nascidos, comparativamente aos resultados de 2009, o que se deve a uma melhor recolha de números, mas também ao aumento da capacidade de resposta dos centros públicos e às taxas de sucesso, refere o relatório.

Mariana tem um quarto em tons de verde e rosa

Contabilizando só as técnicas mais complexas, foram quase dois mil bebés a nascer com a ajuda da medicina e da ciência. Quanto a listas de espera, no final de 2011 no Serviço Nacional de Saúde estavam 1800 casais à espera de um tratamento, de um total de três tentativas de que dispõem até aos 40 anos para poderem ter um filho.

O quarto de Mariana, decorado ao pormenor em tons de verde e rosa, com treliças nas paredes e uma árvore pintada repleta de flores e borboletas mostra o quanto Ana Caniço e o marido desejavam ter um filho. Tudo combina. Em todos os recantos há pormenores que não deixam dúvidas de que aqui dorme uma menina. Nas mesas e prateleiras estão molduras que mostram o casal com Mariana e está também exposto o teste de gravidez. E no topo de um armário há até um molde em gesso da redonda barriga de Ana pouco antes do parto.

Ana Caniço começou cedo a tentar ser mãe, mas rapidamente se deparou com um problema: quase não consegue ovular naturalmente e, por isso, a sua capacidade de engravidar sem apoio é muito reduzida. Tem também abortos espontâneos sucessivos que ainda não se conseguiram explicar. Decidiu por isso, e por ter apoio familiar, fazer os tratamentos no sector privado, para se deparar menos com a angústia da espera.

Em geral, segundo explica Alberto Barros, um dos médicos pioneiros da área no Hospital de São João, agora professor catedrático de genética da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e director de um dos principais centros privados de tratamentos de procriação medicamente assistida, a causa da infertilidade distribui-se da mesma forma entre os membros do casal, sendo que no caso da mulher a dificuldade de engravidar acentua-se a partir dos 30 anos, existindo uma queda drástica depois dos 35 . Há também 10% dos casos em que a causa da infertilidade permanece por explicar.

“A mulher tem duas idades, a cronológica e a procriativa que tem uma nota de 'muito bom' até aos 30 anos, 'bom grande' até aos 32, 'bom pequeno' aos 33, 34 e aos 35, 36 um 'suficiente mais'. A qualidade dos ovócitos, nomeadamente o conteúdo genético, tem muito a ver com a idade da mulher e isso não acontece tanto com o homem. Como diz o povo, 'homem velho com mulher nova, filhos até à cova'”, diz Alberto Barros, que lembra que “a gravidez não acontece como quem carrega num interruptor”. E aconselha os casais a não adiarem demasiado a decisão de ter filhos para se existir um problema haver tempo para o resolver, já que entre medicamentos, cirurgias, inseminação artificial e recolha de células ou procura de um dador para fecundação em laboratório, várias são as alternativas a considerar.

Ana começou a tentar engravidar em Maio de 2004 e em Novembro desse mesmo ano detectou-se que tem ovários poliquísticos. Foi apenas em Maio de 2005 que pôde avançar para tratamentos à base de hormonas que induzem a ovulação e, após três meses sem sucesso, em Agosto teve o seu primeiro positivo. Comprou uma chucha e planeou ao pormenor a forma como deu a novidade ao marido. “Estávamos grávidos e não podíamos estar mais felizes”. A felicidade parou às dez semanas. A gravidez não evoluiu.

Em Janeiro de 2006 conseguiu uma nova gravidez, mas que também não passou das sete semanas. “A nós não nos conforta saber que é muito comum haver abortos ou aquela questão do senso comum de que somos capazes de engravidar. Sei que consigo mas não sei se consigo levar avante a gravidez. E o ser nova não interessa nada, pois uma pessoa que fique viúva também pode casar outra vez. Aquele bebé era o nosso bebé e as pessoas falam como se os bebés fossem um bocadinho descartáveis.” Para Ana não são. Continua a guardar ecografias e tudo o que está relacionado com as gravidezes que perdeu.

Ana ficou grávida de três bebés

Ana começou a esmorecer mas sempre que tinha luz-verde do médico voltava a tentar. Em Outubro fez mais tratamentos, desta vez com injecções de estimulação, sem sucesso. Em Março de 2007 os tratamentos, sempre controlados com ecografia, deram lugar a dois ovócitos. Ana conseguiu engravidar e na primeira ecografia teve uma surpresa: afinal estava grávida de três bebés. Apesar de saberem que as gravidezes gemelares têm mais riscos, não estavam preparados para o que viria a seguir. Às 18 semanas entrou em trabalho de parto. Fizeram uma cesariana e tiraram um dos bebés, para poderem salvar os outros. Só que Ana teve várias complicações, corria risco de vida e estava na iminência de perder o útero. Pouco mais de uma semana depois os médicos decidiram fazer-lhe nova cesariana para fazer um aborto medicamente assistido.

“A sensação é de um vazio enorme emocionalmente e em termos físicos”, diz, recordando que nos quartos ao lado estavam mães com os seus bebés ao colo e famílias felizes. Ana teve subida do leite mas não restou nenhum dos três filhos rapazes para amamentar. E o pior foi ter sido obrigada a parar as tentativas durante ano e meio. Chegou a pensar adoptar mas recorda que “a adopção é outro processo de espera e de angústia”. Terminada a pausa seguiram-se mais estimulações e duas tentativas com um tratamento mais avançado em laboratório tal como a fecundação in vitro: a microinjecção intracitoplasmática (ICSI), que consiste em injectar um único espermatozóide nos ovócitos que são retirados à mulher por via vaginal e em implantar depois os embriões. Numa delas houve gravidez, com um novo aborto. Só no final do Verão de 2009 veio o positivo de Mariana que acabou por nascer a 11 de Abril de 2010 com 2985 quilogramas, depois de uma gravidez controlada quase semanalmente para Ana poder “respirar”.

São casos de sucesso e de persistência como o de Ana que animam Margarida Pires, de 33 anos, a superar os efeitos dos tratamentos. Sempre disse que queria ser mãe muito nova. Talvez aos 18 anos. Mas a vida demorou mais a assentar e acabou por achar mais prudente terminar primeiro a licenciatura em psicologia. Só depois de casar pensou avançar com os planos. “Para nós era um dado adquirido que quando quiséssemos íamos engravidar”. A natureza trocou as voltas de Margarida e do marido, que há quase quatro anos tentam aumentar a família.

Depois de mais de um ano na expectativa de que a menstruação não viesse Margarida decidiu pedir ajuda médica e na altura valeu-se dos vários contactos que tinha. Os primeiros exames indicavam que estava tudo bem. “Cada vez que se muda de médico é um batalhão de exames e acabamos por perder muito tempo nestes processos. É desgastante”, explica. Foi com o resultado de um espermograma do seu marido que veio a explicação. O problema estava no comportamento dos espermatozóides de Manuel que não se moviam como deviam. A solução passava também por uma ICSI, muito utilizada em casos de infertilidade masculina.

O preço de ter um filho

Mas quando tudo parecia encaminhado Margarida esbarrou no preço pedido por este tipo de tratamentos no sector privado, não cobertos em geral pelos seguros de saúde. Uma única tentativa ficaria em cerca de 3500 a 4000 euros, valor ao qual ainda é necessário juntar alguns medicamentos. Valores que Ana também sabe de cor: só desde a gravidez gemelar gastou mais de dez mil euros, sem contar com deslocações e medicamentos. Ana e Margarida são unânimes e assumem que a sociedade prepara os casais para a quase obrigatoriedade de terem filhos mas que o lado dos eventuais problemas fica sempre de fora, sendo que se fala na factura que um filho acarreta mas ninguém diz que há muitos que nascem apenas após um grande investimento financeiro. As consultas, medicamentos e exames podem ultrapassar as largas centenas de euros e mesmo um dos tratamentos mais simples, a inseminação intra-uterina, anda na casa dos 500 euros. Já a fertilização in vitro é mais barata do que a ICSI mas mesmo assim não costuma ficar em menos de 2500 euros.

Margarida decidiu inscrever-se na lista de espera para um hospital público. Teve a primeira consulta no Hospital Garcia de Orta em Março de 2012 e fez o primeiro tratamento em Maio, sem qualquer sucesso. A percentagem de sucesso dos tratamentos está entre os 30 e os 40%. Carlos Calhaz Jorge sublinha que “as variáveis envolvidas são enormes e que falta saber mais coisas sobre a natureza”, já que continuamos a depender da qualidade das células e que é aí que é preciso trabalhar mais.

“Tem havido algumas melhorias na individualização dos métodos de estimular os ovários e nos meios de cultura laboratorial, mas ainda falta avançar muito, mesmo nos instrumentos utilizados em laboratórios”, refere, mas recorda que mesmo num casal sem problemas a probabilidade de haver uma gravidez em cada ciclo é de 20%, pelo que a taxa de sucesso da procriação medicamente assistida está até em níveis acima e tem-se, também, conseguido trabalhar na qualidade, para reduzir por exemplo o número de gravidezes gemelares, que acarretam sempre mais riscos. “Quanto mais conheço mais questiono como é que há tanta gravidez. É preciso que haja tanta coisa bem para que uma gravidez ocorra que a surpresa está mais no âmbito da facilidade do que da dificuldade”, acrescenta Alberto Barros.

A próxima tentativa de Margarida será só em 2013, ainda sem data marcada e será a penúltima. O Serviço Nacional de Saúde comparticipa até três tratamentos, mas com o limite de um por ano. Uma imposição que desagrada tanto a Carlos Calhaz Jorge como a Alberto Barros. Mais do que o problema de só se comparticiparem três tratamentos, os especialistas criticam a imposição de só poder ser um por ano. “Isso retira a capacidade de gestão clínica, nomeadamente quando os casais se aproximam mais do limite etário que foi definido”, diz Calhaz Jorge. No sistema público as mulheres devem ter menos de 40 anos para poderem ser submetidas a tratamentos.

E não se prevê que as coisas venham a mudar num curto espaço de tempo. O presidente do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, organismo que regula os centros prestadores destes tratamentos, explica que têm sobretudo “dado continuidade e não procurado fazer grandes transformações” à legislação em Portugal. A comissão tem, por isso, apostado em “permitir que o avanço da ciência possa ser aplicado” no país e que a qualidade dos tratamentos disponibilizados seja garantida, independentemente da instituição onde os casais se dirigem.

Muito sofrimento para quem vive o processo

O juiz Eurico Reis recorda que infertilidade é um conceito mundialmente aceite e que está inclusive definido pela Organização Mundial de Saúde, pelo que qualquer decisão relacionada com o tema “deve evitar superficialidades e reconhecer que há muito sofrimento” para quem vive o processo. O responsável reconhece a existência de algumas assimetrias a nível nacional, nomeadamente a maior dificuldade de acesso a tratamentos em Lisboa, Alentejo e Algarve. Porém, perante a actual crise económica e financeira, o especialista teme um “retrocesso” na situação do país e que “os constrangimentos financeiros” se sobreponham contribuindo para reduzir ainda mais a taxa de natalidade – quando se prevê que este ano termine com menos de 90 mil bebés nascidos em Portugal, ou seja, menos que o número de óbitos.

Até à próxima oportunidade Margarida e o marido tentam continuar a aprender a lidar com o vazio e estudam alternativas. Leram que a acupunctura pode ajudar e vão tentar, mas uma parte da família mais próxima nem sequer sabe o que estão a atravessar. “É uma coisa nossa que preferimos viver sozinhos. Irrita-me ter de ouvir que é por andar nervosa ou ter toda a gente a dar palpites. Na altura dos tratamentos fui-me muito abaixo, mas é um problema nosso, que vivemos a dois, ainda que de maneiras diferentes. Somos um casal muito unido e continuaremos bem sem filhos, mas neste processo não se consegue pensar nem fazer mais nada”.

Uma postura diferente da de Ana Caniço, que encontrou na sua experiência pessoal uma boa oportunidade de divulgar o tema da infertilidade, tendo-se por isso juntado à Associação Portuguesa de Fertilidade, criada por Cláudia Vieira em 2006 quando se deparou com dificuldades em engravidar. Tinha 28 anos e estava casada há um ano quando sentiu que reunia todas as condições para ter filhos. Oito meses depois nada acontecia e pediu ajuda, até porque tinha um caso de infertilidade na família e “estava alerta”. Tinha uma das trompas obstruída e, a juntar-se a isso, havia um problema também na forma como os espermatozóides do seu marido se moviam. Ao terceiro tratamento engravidou de gémeos e pensou: “O difícil foi engravidar mas consegui”. Às 21 semanas foi surpreendida por contracções e perdeu o casal para o qual já tinha nomes. “É uma dor e um vazio tão grandes que pensei que nunca mais recuperava”. Nova gravidez, 15 dias depois novo aborto.

Era altura de deixar o serviço público onde tinha esgotado as tentativas. No primeiro tratamento numa clínica privada engravidou de Marta e de Margarida, curiosamente gémeas verdadeiras, agora com quatro anos e meio. “Foi uma gravidez vivida com contenção e entrei em trabalho de parto às 33 semanas. Nasceram com 1600 e 1380 quilogramas, mas recuperaram bem”, recorda. Cláudia e o marido sempre sonharam com uma família maior e arriscou mais um tratamento que foi certeiro. Agora as gémeas contam com o irmão Francisco, de dez meses. “Foi uma gravidez mais tranquila em que consegui manter a minha actividade profissional e passear na rua com as gémeas e a mostrar a barriga.” Cláudia, ultrapassado o choque inicial, optou por exteriorizar o que vivia e, perante a falta de informação e de um sítio onde procurar apoio, criou a associação à qual ainda dedica muito tempo. “Ainda existem muitas limitações de acessibilidade e procuramos ajudar as pessoas o mais cedo possível numa altura em que é tão importante renovar gerações”, sublinha.

Alberto Barros acredita que se os casais se abrirem com os amigos como fizeram Ana e Cláudia que isso ajuda: “Todo este processo custa sobretudo do pescoço para cima. O problema emocional é fundamental. Ainda há muitas pessoas que escondem o problema dos seus familiares mais próximos, mas dizer é uma forma de evitar que as pessoas continuem a perguntar quando é que vêm os filhos. A infertilidade é como as feridas. As feridas devem estar quietas e não se deve pôr a mão por cima desnecessariamente porque incomoda e quem está à volta deve perceber isso”.

“Não é uma doença aguda, é crónica e vai-se arrastando. A vivência das frustrações pode ser muito pesada. O oposto disso é o aparecimento de uma criança que em 80% dos casos anula o passado, mas há outros 20% em que se mantém mesmo nos que conseguem. As crianças que nascem destes esforços são um pouco nossas e os casais também sentem isso”, completa Calhaz Jorge. Aliás, Alberto Barros tem mesmo um dossier onde guarda algumas fotografias que os pais bem-sucedidos lhe enviam, recordando em especial um caso concretizado ao fim de 19 anos e meio de tentativas. “Mas há algo que ainda me toca mais, são as cartas e comentários que me são dirigidas de casais que foram tratados e que não tendo sucesso traduzem o reconhecimento do esforço que foi feito”, diz o médico. Defende por isso, que estas gravidezes de risco sejam tratadas com especial atenção. “Se todas as gravidezes devem andar ao colo, umas mais do que outras devem ter esse mesmo colo”, resume.

Perante tantas pedras no caminho, Ana continua a defender que se deve persistir “enquanto for menos doloroso tentar e enquanto houver clinicamente expectativas de que os tratamentos possam resultar. Agora quando a tentativa começa a ser mais difícil do que a ideia de não ter filhos deve haver um momento para parar”. Quanto a um terceiro filho... “Eu gostava, mas vou fazer uma quarta cesariana. Também não quero pedir demais”, refere enquanto olha para a barriga e faz uma nova festa a Rodrigo.

http://www.publico.pt/sociedade/noticia/quando-e-preciso-dar-um-empurrao-a-cegonha-1575040

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