sábado, 20 de outubro de 2012

Sol: Os mitos alimentares

A nossa alimentação está cheia de mitos. Comer laranja à noite faz mal? Deve-se beber vinho a seguir a uma fatia de melancia?

De manhã é ouro, à tarde prata, à noite mata. Não é o título de um thriller televisivo de gosto duvidoso. O que se designa por esta série de metáforas estendidas ao longo do dia é uma simples laranja. E há muito que entra numa lista sem fim de ditados e superstições populares que definem a melhor forma de lidarmos com os nossos alimentos.

Por isso, há muitos mais exemplos: o vinho ‘encortiça’ o estômago se o bebermos depois de ingerirmos uma fatia de melancia; peixe não puxa carroça; a bebida deve ser comida e a comida bebida, entre muitos outros. Mas se estes são casos de sabedoria popular, há versões mais contemporâneas de filosofia alimentar que rompem as malhas do bom senso.

Para quem viveu a adolescência ou os primeiros passos da maturidade nos anos 80, encarou de frente a era de ouro dos óleos vegetais. Eles seriam o maná da bem-aventurança gastronómica, o supra-sumo da saúde, e os óleos de cozinha convencionais tiveram de atravessar uma década de agruras, perdida para o óleo de girassol ou para o azeite.

Dito de outro modo, a comida entrava oficialmente nos planos de marketing das empresas. Pelo menos em Portugal, com um ligeiro atraso da praxe em relação a outros países ocidentais.

Mas é preciso deixar a advertência: a publicidade feita em torno dos alimentos não mente, mas permite fantasiar. Esta técnica de promoção «baseia-se na composição química do alimento, normalmente em algo que o consumidor valorize. Aí, é só preciso criar a sugestão dos benefícios que podem advir», explica Manuel António Coimbra, especialista em Bioquímica Alimentar na Universidade de Aveiro.

Mas não nos desviemos do assunto. Qual é o óleo melhor para cozinhar o quê? Não é possível ser-se taxativo na resposta.

Basta dizer que os tempos mudaram e que as guerras de marketing entre marcas têm de ser medidas de outra maneira. «Os óleos alimentares são hoje em dia muito mais bem controlados quanto à formação de compostos de decomposição térmica», continua Coimbra. «Se forem mudados regularmente não há problema». O que se sabe com alguma certeza, porém, é que, independentemente do óleo, como os alimentos o absorvem, «tornam-se muito mais calóricos». Mas o azeite não é de desprezar enquanto gordura saudável. «É melhor para fritar, desde que não fique escuro com mais do que uma fritura», completa a endocrinologista Isabel do Carmo.

Carne de minhoca

As marcas devem acautelar-se nas guerras comerciais. A vigilância alimentar redobrou desde aqueles loucos anos 80, em que chegaram a circular boatos sobre a origem da carne do então recém-chegado McDonald’s.

Dizia-se que a carne dos hambúrgueres da multinacional norte-americana não era de vaca, mas de minhoca. E que até haveria culturas de minhocas em Vila Franca de Xira para fornecer os restaurantes... Não passou de um mito urbano com requintes de ruralidade.

Com a maior vigilância, veio também um rigor maior. Os alimentos devem passar por várias fases em laboratório (e fora dele) para que dêem provas da sua qualidade efectiva. «Têm de ser feitos ensaios in vitro, in vivo e epidemiológicos que comprovem que o alimento tem na realidade os benefícios para a saúde que se reivindicam» para ele, esclarece Manuel António Coimbra. Por isso, não basta falar. É preciso testar. Por isso, se dizemos que o iogurte x ou a margarina y são bons para a saúde, podemos entrar no paradoxo de, como Garrett, falar a verdade a mentir, ou de mentir dizendo a verdade.

Não se pode dizer, no entanto, que um anúncio destes seja uma mentira. Há uma subtileza química naquelas três fases de laboratório: «Nem todos os compostos benéficos a determinado órgão atingem o seu destino». Coimbra acrescenta um exemplo à sua observação. «Um alimento benéfico para as células cerebrais que se verifique in vitro mas que não seja absorvido pelo estômago nem pelo intestino ou que aí seja degradado nunca irá chegar à corrente sanguínea, que o transportaria ao cérebro».

Não mata, mas mói

Entendido. Mas o que é feito dos outros mitos mais prosaicos? Será mesmo que as laranjas nos matam se as comermos à noite? É simples: há quem faça má digestão da laranja e há quem não tenha qualquer problema com o citrino. Como explica Isabel do Carmo, «àquelas que fazem má digestão não mata, mas perturba o sono».

Para dormir melhor nada como um prato leve ao jantar. Este arrazoado permite confirmar a veracidade de outro dos pilares da sabedoria popular, ‘peixe não puxa carroça’. Mais uma vez, a explicação é simples. Isabel do Carmo serve-se de uma comparação: «Cem gramas de perna de porco assada têm 341 kcalorias e 100 gramas de pescada cozida 114 kcalorias». Há que ter em conta, porém, que «é natural que quem faça trabalho físico esforçado, o que actualmente já acontece em poucas tarefas, sinta que o peixe não lhe dá calorias para ‘puxar a carroça’».

O esforço físico é outra das variáveis a ter em conta para confirmar os ditados. Mas daria para um tratado à parte. Alguns trabalhos, que antes quase exigiam capacidades atléticas, vão-se tornando mais raros e o consumo de calorias aumenta. O resultado é uma população obesa. Nem sempre foi assim, é claro. A chegada da democracia atirou os níveis de vida dos portugueses para níveis de 1.º mundo e aumentou-lhes o peso. Antes, a alimentação era algo mais relativo. E alguns ditados são testemunhos de tempos de carência, entretanto esquecidos, e que podem regressar com a crise e a austeridade.

Noutros tempos, era natural aconselhar às grávidas o consumo de uma cerveja preta com gema de ovo. Isabel do Carmo esclarece esta aparente extravagância: «A cerveja preta com gema de ovo é uma bomba calórica, porque as pessoas viviam na fronteira com a carência. Actualmente não está nada indicado, quando a maior parte das vezes o que há é excesso calórico».

Chegou, entretanto, uma área obcecada com a saúde. A primeira etapa é a alimentação. Saltitam nos pequenos ecrãs, na internet, em outdoors, anúncios a tecer loas a compostos químicos designados por letras gregas. O ómega 3 passou ao estatuto de musa dos alimentos saudáveis. Neste caso, o poema épico que lhe dedica o marketing diariamente está certo, de acordo com os especialistas. Podem realmente prevenir doenças cardiovasculares e são agentes privilegiados para ajudar no processo de regulação de várias funções biológicas. Lancemo-nos, por isso, a pratos de salmão e da tradicionalíssima sardinha.

E se a sardinha é símbolo nacional, muito já se disse também sobre as propriedades do vinho, essencialmente o tinto. Os técnicos de marketing agarram-se a determinadas características químicas e estão atentos a fenómenos como o do ‘paradoxo francês’.

A expressão remonta ao início dos anos 90, quando investigadores da Universidade de Bordéus publicaram um estudo em que se mostravam impressionados com a dieta dos franceses e a sua longevidade.

Apesar de não se pouparem a gorduras e calorias às refeições, os gauleses pareciam menos expostos a doenças do coração quando comparados, por exemplo, a outros obesos ilustres, os americanos. A resposta estava num segredo afinal mal guardado: um copo de vinho tinto à refeição. A chave de uma dúvida milenar tinha sido encontrada. E é evidente que o consumo só é bom se for feito com parcimónia... Deve evitar-se, já agora, bebê-lo depois de uma fatia de melancia, porque ‘encortiça’ no estômago e causa enfartamento. Sabedoria popular dixit.

Água para todos os gostos

Na era da saúde, a água também caiu no imaginário colectivo. O resultado foi uma inundação, já que são bastantes os equívocos relacionados com o líquido da vida.

Exemplos? A água morna em jejum ajuda a emagrecer. A resposta é não. «É óptima para quem tem obstipação. Mas não faz emagrecer», diz Isabel do Carmo. Manuel António Coimbra completa: «Para emagrecer é preciso consumir menos energia do que a que se gasta. A água não dá nem tira energia».

E qual será a quantidade ideal diária do precioso líquido? 1,5 a 2 litros/dia. Mas, tendo em conta que muitos alimentos que ingerimos já o têm em grande percentagem, é difícil medir a dose certa. Seja como for, quem perde muita água por transpiração ou quem sofre de certas doenças crónicas, como a diabetes, deve estar alerta para um consumo de água adequado.

Mais dúvidas? O escritor norte-americano Jack London (1876-1916) disse que uma das transformações mais sofisticadas que a humanidade trouxe ao mundo foi a confecção dos alimentos. Por isso, nunca haverá consensos. A não ser que se aplique, mais uma vez, um provérbio à situação: a fome é a melhor cozinheira.

http://sol.sapo.pt/inicio/Vida/Interior.aspx?content_id=60116

Sem comentários:

Enviar um comentário