domingo, 2 de dezembro de 2012

Público: Sozinhos em casa com os filhos

Mudaram fraldas, deram-lhes banho e de comer, entretiveram-nos e viram o tempo a correr pelos dedos quando chegava o fim do dia. Vasco Ferreira, 31 anos, produtor de espectáculos em Paredes de Coura, e Manuel Magalhães Sant'Ana, 36 anos, investigador em Bioética na Universidade do Porto a viver em Faro, ficaram sozinhos com os seus filhos quando eles tinham meses, gozando do regime que lhes permite fazê-lo sem que isso afecte o seu rendimento.

São uma excepção à regra – que as estatísticas em Portugal não revelam por falta de dados, mas os estudos qualitativos sim – e podem ser considerados casos-padrão, contextualiza Maria das Dores Guerreiro, do Observatório das Família e das Política de Família e do CIES-IUL. As mulheres de ambos tinham uma situação profissional menos flexível do que eles. “Nos casos mais comuns em que as situações profissionais estão em pé de igualdade e tanto o pai como a mãe têm condições rígida de trabalho, difíceis de conciliar com a vida familiar, tende a ser a mãe a optar pelo uso das licenças”, diz a socióloga. “Mas a situação mais generalizada, após a licença parental paga entre 80% a 100%, em Portugal, é recorrer a serviços pagos (creches, amas) ou a familiares quando os há”.

Quando a segunda filha de Vasco Ferreira nasceu, a mulher estava a trabalhar por conta própria; no caso de Manuel Sant’Ana a conclusão de um projecto europeu de investigação impedia a mãe de ficar com o filho. Tanto uma como a outra criança deixaram de mamar cedo, eram os pais que davam os biberões – e eram pais a tempo inteiro. Vasco e Manuel começaram por achar que iriam ter tempo para trabalhar nos intervalos. Nenhum conseguiu.

“Durante três meses foi dedicação a 100%”, lembra o produtor de espectáculos sobre o período entre Outubro e Dezembro de 2011. Fala de uma opção “completamente natural”: “Tinha imensa vontade de ficar em casa. A Cátia [mulher] tinha feito a licença com a Beatriz [a primeira filha], sentia-se sozinha e desamparada e eu tinha de assumir o papel para não ser tão carregado para ela.” 

Quando foi aos serviços da Segurança Social, Vasco Ferreira viu-se enrolado em burocracias complicadas e acabou por ser ele a tratar de todo o processo porque os funcionários não sabiam como lidar com a situação. Diziam-lhe que só tinham feito pedido de licença parental para homens “duas vezes e há muito tempo”. Manuel Sant’Ana lembra que, em Faro, ninguém “sabia preencher o requerimento de subsídio” e houve até quem dissesse “que só a mãe podia gozar de licença exclusiva”. A directora de serviços acabou por resolver o problema.

Apenas para quem tem altos rendimentos?

Segundo a lei, depois de a mãe gozar os 42 dias iniciais obrigatórios, o pai pode pedir o subsídio parental em vez dela até 120, 150 ou 180 dias seguidos – em 2011, a partilha pelos pais em pelo menos um mês desta licença foi de 20%, segundo dados do Instituto de Segurança Social, ou seja, 16.719 homens entre 81.300 licenças concedidas. Mas este número exclui os funcionários públicos que descontam para a ADSE e outros sistemas que não desagregam os dados por sexo e, portanto, deixa de fora uma parte significativa de pais e mães, lembra Maria das Dores Guerreiro. Apesar dos 20% serem ainda um número baixo, revelam um aumento expressivo desde que a lei entrou em vigor em 2009 e uma “grande mudança” nas “novas gerações”, diz a socióloga. Porque cada país tem sistemas de licença diferentes, não é possível fazer uma comparação a nível europeu, mas o que se sabe é que quanto mais tempo de licença parental as políticas públicas prevêem, mais ele é gozado.

Hoje os pais podem ficar em casa durante o primeiro ano de vida dos filhos desde que a licença parental seja partilhada entre os dois membros do casal: a mulher pode ficar em casa durante cinco meses com remuneração a 100% e se o sexto mês for gozado pelo pai a remuneração é de 83%. Ainda podem estender por mais seis meses a licença: a contrapartida é que cada um tem de gozar três meses e só recebe 25% do salário. Esta extensão não é popular em Portugal: em 2011 apenas 2,5% dos casais do sector privado recorreram a ela, 1734 mulheres e 307 homens. O que não espanta Maria das Dores Guerreiro, que não reconhece “aplicabilidade generalizável” à medida: “Como é que as famílias se podem organizar com menos 75% do rendimento de um deles? Isto não é possível para a classe média, apenas para quem tem altos rendimentos ou está em situações atípicas de emprego.” O facto de, mesmo assim, as mulheres terem sido cinco vezes mais do que os homens não a surpreende, porque “se os salários das mulheres são mais baixos é lógico que sejam elas a mobilizar esta figura – e eventualmente haverá mais mulheres em situações de emprego flexível ou atípico (seja qual for essa atipicidade) que lhes permitem beneficiar desta medida de política”.

Maria das Dores Guerreiro ressalva que, ao contrário do que acontece noutros países em que grande parte das mulheres com filhos pequenos trabalha a tempo parcial, em Portugal os orçamentos das famílias assentam sobretudo em dois salários a tempo inteiro: quase 70% dos casais com filhos pequenos trabalham a tempo inteiro. Por isso, estas medidas de licença a tempo parcial tendem a ser gozadas por franjas específicas de famílias em situação muito particular perante o mercado de trabalho, quanto a regime de horários e quanto a regime contratual. Mas “não se deve ignorar que este tipo de situações de trabalho profissional cresceu nos últimos anos em Portugal, logo haverá mais pessoas em condições de encontrarem benefício na medida”.

“Tarefeiro” e “dedicação total”

Paulo Caseirito, 31 anos, foge ao caso típico: acaba de regressar à direcção de gestão de risco de uma seguradora, onde trabalha, depois de ter ficado em casa três meses com o filho. Desta vez, ninguém estranhou, porque fez exactamente o mesmo com a filha há cerca de três anos. A mulher, que trabalha na banca, tinha acabado de ser promovida e não convinha ficar mais do que os três meses de licença. “Ela tinha ficado em casa um tempo antes do parto, e achámos que não seria justo estar a ser ela a ficar fora do trabalho tanto tempo”. Ele, que nunca tinha pegado num bebé antes de ser pai, decidiu então que, a partir dos três meses dos filhos, ficaria em casa a tempo inteiro. Apesar de nunca se ter desligado completamente do trabalho, diz que nunca teve problemas com as chefias e que a opção não teve qualquer impacto na sua carreira – “até fui promovido e aumentado”. Sim, é verdade que há três anos amigos e colegas reagiram com surpresa – mas desta vez não.

Entre Fevereiro e Junho de 2010, Manuel Sant’Ana, que adiou o prazo da sua bolsa de doutoramento, começou a partilhar um espaço em que tudo mudou, a sua casa. Lançou-se a pensar que era uma oportunidade, que seria “impecável” a desempenhar o papel de pai a tempo inteiro e que até iria trabalhar em casa. Percebeu que tinha de enfrentar “desafios tremendos”, “muito mais duros para os homens”, porque as mulheres “conseguem lidar muito melhor com as questões da maternidade”: “Até porque enquanto está a dar de mamar a mulher tem a oxitocina, hormona das emoções responsável pela ligação com os filhos. Com os pais, os afectos são construídos. Não há guião e nada mudou no meu organismo que me prepare para a paternidade, como acontece com as mulheres”.

Das coisas práticas que cuidar de um bebé implicam e que o faziam sentir “um tarefeiro”, Manuel confessa que nunca fez nada “tão exigente”. “Os seis primeiros meses de paternidade foram os mais exigentes de toda a minha vida. A privação de sono, a invasão do espaço, a alteração de rotinas e inabilidade em compreender aquele pequeno ser tornavam os meus (nossos) dias verdadeiramente alucinantes. Comparado com isso, fazer um doutoramento é para meninos.” Porque não há experiência prévia para lidar “com um ser que é totalmente dependente de nós”. “Nos primeiros meses a evolução de uma criança é muito rápida e quando nos estamos a adaptar a uma fase já ela passou para a fase seguinte. Mudar fraldas é o mais fácil.”Depois quando começam a interagir, tudo muda", diz: “A partir daí já estamos dentro dos afectos.”

Vasco Ferreira fala da sensação de que não podia falhar: “Senti-me completamente dedicado, e que, conforme o tempo avançava, era o elo de ligação da criança ao mundo, a primeira relação com tudo era eu. É uma coisa exacerbada que não tinha experimentado. Os dias passaram a ser uma dedicação total.” Ele não conseguia pensar em mais nada, e via televisão ou lia um livro sem reter absolutamente nada. “A nossa cabeça não está virada para aí. Por outro lado, há também uma frustração por nos sentirmos um pouco sozinhos: como somos a porta de entrada para o bebé sentimos que temos de estar sempre presentes, enquanto os outros têm uma vida. Quem fica em casa fica um bocado desligado do mundo.”

De resto, nada mudou na relação de Vasco Ferreira com a mulher: “Sempre tive uma perspectiva muito aberta, nunca tive ideia predefinida sobre o que é a paternidade e a maternidade.” No meio em que está, o artístico, a licença de paternidade “é vista como um direito”, ninguém estranhou, nem os chefes; entre os mais velhos, sentia que olhavam para a situação como se fosse um sacrifício e ele um “bom rapaz”. Quanto a Manuel Sant’Ana, nunca sentiu que a sua “masculinidade” fosse “posta em causa” pela opção que tomou: “Sinto orgulho”. “O criticismo foi mais para ela, ainda há muitos preconceitos e as pessoas olham para essa opção como se ela tivesse abandonado o filho”, lamenta.

Hoje, Francisca, a filha com quem Vasco Ferreira ficou desde os primeiros meses, está na fase em que só se agarra à mãe; a mais velha, Beatriz, que morria de ciúmes e se distanciava do pai quando a irmã nasceu, está no período em que o pai é um herói, conta. Manuel Sant’Ana terá um segundo filho em breve. Desta vez, é ele quem tem um prazo de entrega de doutoramento e a mulher pode e vai adiar o seu projecto para ficar a tomar conta do bebé. “Vamos trocar de funções”, diz.

Depois de terminado este texto foram-nos chegando mais depoimentos de pais que ficaram com os filhos e que publicamos:

“Fiquei a conhecer melhor a minha filha e a mim próprio quando estou com ela”

José Pedro Blasques, 32 anos, investigador pós-doutoramento na Universidade Técnica da Dinamarca na área de desenho estrutural de turbinas eólicas

"Moro na Dinamarca e fiquei em casa seis meses com a minha filha Lara quando ela tinha cinco meses e até aos 11 meses. Ela começou a passar alguns dias no infantário a partir dos nove meses. Era bastante mais nova que os colegas, pelo que foi bom para ela, para nós e para a instituição que tenhamos usado algum tempo nesta fase de transição.

Eu e a minha namorada, Ingunn, tínhamos um ano para partilhar a licença parental entre nós e decidimos dividir. Embora o sistema seja bastante flexível, na maioria dos casos a mulher fica com o ano inteiro para ela. Para mim, estes seis meses foi a melhor coisa que podia ter feito!

No princípio foi o desafio de mudar a alimentação da mama para papas. Resolvida essa parte, a Lara e eu éramos independentes. Instalou-se a rotina, o truque era tentar ter um plano para todos os dias – piscina, parque infantil para pais (não permitido a mães), passeios no parque, e visitas a museus. Para mim foi aprender o quão duro e quão imensamente gratificante é tratar de uma criança, especialmente da minha filha.

Digo que foi duro porque hoje sinto que é muito bom para a nossa relação: tanto eu como a Ingunn sabemos, por experiência própria, o desafio que pode ser, de um momento para o outro, ter que pôr tudo de lado e pensar só na Lara por longos períodos de tempo.

Digo gratificante porque a Lara e eu tivemos tempo para nos conhecer um ao outro. Para a mãe este processo é bastante natural devido à amamentação. No entanto, para o pai este tempo tem que ser criado. Estes seis meses foram a minha oportunidade – pelo menos uma vez nas nossas vidas a Lara e eu estivemos o que pareceu todo o tempo do mundo.

Fiquei a conhecê-la melhor, o mais valioso. Fiquei também a conhecer-me quando estou com ela. Por exemplo, hoje, se tenho que tratar dela durante algum tempo (especialmente se está mal disposta), volto sempre a esse período que tive com ela. Primeiro, e mais importante, para encontrar confiança. Isto é muito importante porque, como pais, o normal é uma pessoa sentir-se insegura – querer fazer tudo bem mas não saber como. Segundo, porque se aprendem truques ou maneiras de fazê-la sentir-se bem sem ter de desperdiçar muita energia. Sim, porque tratar de uma criança é tipo maratona, tens que estar muito concentrado para saber exactamente quanta energia te sobra para saberes quanta podes usar. Desta forma acabo por maximizar os tempos bons com ela.

No emprego disse adeus em Março e voltei em Agosto. Trabalho na universidade, ou seja para o Estado. Por lei tenho este direito. Mais, por lei ninguém pode sequer sugerir que a minha decisão de tirar seis meses poderá de alguma forma afectar a minha situação de trabalho. Pelo que a coisa é bastante clara. O meu chefe fez o mesmo que eu quando teve filhos. Mais uma vez por lei a entidade empregadora não pode fazer nada quanto à minha decisão. A minha mãe ficou preocupada se isto seria bom para o meu futuro. Mas tem piada que muito provavelmente esta questão não se poria se eu fosse mulher.

Tive que deixar de trabalhar e de pensar no trabalho... que pode ser mais difícil do que se pensa.

Tenho direito ao salário por inteiro durante 12 semanas e o resto do tempo recebo um rendimento tipo subsídio de desemprego – cerca de 1340 euros depois de impostos, que parece muito mas é pouco para o nível de vida de cá. Porquê esta opção? Pago impostos bastante altos, o tempo não é assim grande coisa e este tipo de regalias são uma das razões pela qual gosto de cá estar. Tinha a oportunidade de passar tempo com a minha filha e a oportunidade de não trabalhar durante seis meses, pelo que não vejo a razão pela qual não haveria de o fazer.

O mais importante foi perceber a quantidade de energia que é necessária para tratar de bebés e o que isto exige de nós como pessoas. Temos que fazer algo que não é muito natural, deixar de prioritizar as nossas necessidades e pensar primeiro nas dos nossos filhos (pelo menos quando são tão novos). Depois há o lado prático, as fraldas, a comida, os banhos, os médicos, etc. Isto tudo tem que ser aprendido. Eu não sabia nada de bebés até a Lara nascer, pelo que é lógico que demore um pouco de tempo. É muito fácil esquecer isto e ficar imensamente frustrado quando tudo não corre como o planeado.

A minha família sempre me apoiou, ficaram felizes de eu estar feliz. Tenho alguns amigos que tinham feito o mesmo e que, de certa forma, me inspiraram a tomar esta decisão. Para outros que tinham usado menos tempo acho que gostaram de sentir que era possível. Em muitos casos o desafio está entre o casal. Muitas mulheres cá sentem que este tempo é delas e que poderão ou não deixar o pai usá-lo. A Ingunn ouviu muitas vezes este comentário no grupo de mães dela – "Ah, mas tu deixaste o Zé ficar com a Lara?". Por outro lado, alguns pais também não estão interessados, encontrei muitos no parque infantil para pais que se queixavam e diziam que não gostavam. Entre nós foi sempre claro que iriamos dividir o tempo. Tem-se discutido nos media se deveria ser obrigatório os pais passarem tempo com os filhos, i.e., parte do tempo ser só para o pai e se ele não usar a mãe também não o pode usar."

“Culturalmente nós, homens, ainda temos que ganhar esse espaço”

Paulo Vasconcelos, 34 anos, engenheiro

"Como a criança foi alimentada em exclusivo com leite materno, quisemos maximizar o período inicial de proximidade com a mãe e deixar o mês do pai para o final desse período. Esta opção permitiu-nos ainda maximizar o tempo de permanência da criança em casa, sempre com um dos pais, uma vez que não temos o apoio dos avós, e adiar um pouco mais a ida para a creche. Fiquei com ela do quinto ao sexto mês.

No emprego precisei apenas de preparar com antecedência a minha ausência, de modo a fechar todos os dossiês em curso e garantir que os processos não ficariam pendentes.

Durante o mês da licença estive totalmente afastado do emprego e a empresa deu-me esse espaço.

A empresa permite esta licença e não põe qualquer obstáculo. Foi tranquilo e sem qualquer pressão.

Num primeiro momento, o principal desafio foi ganhar confiança para garantir em exclusivo todos os cuidados da criança. Numa segunda parte, foi a gestão de tempo sobretudo respeitando o horário rigoroso das necessidades do bebé. Cumprir horários foi de facto um desafio que, estando a sós com o bebé, nem sempre é fácil de garantir.

"No meu tempo não havia nada disto!" foi o principal comentário da família. E embora reconheça o mérito, a família ainda acha estranho o conceito. De uma forma discreta notei que ainda há algum preconceito, sobretudo das mulheres, em admitir que o pai também é capaz de responder a todas as tarefas que uma criança exige. Culturalmente nós, homens, ainda temos que ganhar esse espaço. Os amigos aplaudem, sobretudo os que já têm filhos e que pontualmente também passaram pela mesma experiência.

Mas ter ficado em casa com ele melhorou muito a relação com o meu filho. Por um lado, permitiu-me descomplicar o mito da exigência do cuidado de uma criança, deu-me a confiança de saber que consigo garantir o bem-estar do bebé. Reforçou laços de empatia que de outra forma, e nesta fase de ouro, certamente não seria possível. A mãe assume sempre um papel principal nos cuidados e, desse modo, a relação pai/filho tem necessariamente menos espaço para crescer, pelo menos nestes primeiros tempos. Este mês trouxe esse espaço, essa oportunidade de reforçar laços. Mas a comunicação não verbal foi a maior conquista do meu ponto de vista. Tanto eu percebo melhor todos os sinais do bebé, como ele próprio me vê e me encara com mais naturalidade e entusiasmo. É uma oportunidade de ouro num momento de ouro."

“A opção não foi bem recebida por alguns colegas e patrão”

Nuno Silva, 37 anos, arquitecto no desemprego

"Comecei a tomar conta da Sarah desde o nascimento dela, há dois anos. Durante os primeiros cinco meses em que a minha esposa esteve em casa, fiquei em casa nos primeiros 20 dias úteis, e no sexto mês fiquei sozinho com a Sarah. Durante o ano subsequente trabalhei menos um dia por semana, e a minha esposa também.

Um das razões desta opção foi a grande distância a que se encontravam (e encontram) os nossos pais ou quaisquer outros familiares directos, mas a principal razão é a nossa convicção de que nesta fase inicial – um, dois anos – existe uma enorme influência das pessoas que educam e interagem com os bebés na formação das suas personalidades, nas suas identidades como pessoas. Por isso, para nós não faz sentido transferir essa responsabilidade para terceiros: por muito profissionais, por muito afectivos que sejam não se equiparam aos pais. Vejo esta opção como um dever, uma "obrigação" que a responsabilidade de ser pai acarreta.

Também teve imensa influência o facto de tanto eu como a minha esposa termos passado pela mesma experiência na infância, em que as nossas famílias tudo fizeram para nos propiciar o melhor ambiente familiar possível.

Vemos a importância e relevância do valor da família não como um momento (o nascimento do bebé), mas como processo contínuo que se pretende construtivo para todos (pai, mãe e filhos).

Uma parte complicada foi a gestão com o emprego. Tinha um cargo de responsabilidade e esta opção não foi bem recebida por alguns colegas e principalmente pelo meu patrão. Fui afastado do cargo e das responsabilidades que desempenhava. Não foi fácil manter a convicção de dar o máximo de apoio à Sarah e de ter que sofrer as consequências por essa opção.

O principal desafio de ser pai foi e é manter a concentração no apoio a dar à Sarah. As crianças são como esponjas, sedentas de afecto e de informação. Tive que aprender com ela, ver como reagia ao seu crescimento/desenvolvimento psicomotor e tentar informar-me de como poderia dar resposta a essas exigências. Esse processo ainda não terminou e sinceramente penso que não vai terminar tão cedo. Educar é aprender também.

Outra dificuldade foi a incompreensão social sobre o papel que um pai deve ter. De uma forma geral, as pessoas reagiram positivamente, mas manifestaram-me o receio das consequências que essa opção teria para mim. Tinham razão em alguns aspectos, apesar de eu ter a certeza que faria tudo exactamente igual. O trabalho é importante, mas é passageiro, temporário, transitório, precário. Ser pai uma vez é ser-se pai para sempre. A responsabilidade e as consequências não podem cair na criança, que é a "personagem" isenta de qualquer responsabilidade na solução dos problemas laborais e sociais que são criados. No entanto, é muito reconfortante ouvir pessoas que conhecem a Sarah (especialmente na creche) dizer que ela é especial, muito amorosa, muito simpática, muito (re)activa, muito curiosa. Tenho a certeza que seria outra pessoa, sendo educada por um estranho.

Em que é que isso mudou a sua relação com a minha filha? Em relação à opção "normal", é eu sentir que a Sarah é a "minha" filha. Conheço-a como ninguém, acompanhei-a todos os dias da vida dela e tenho um dia-a-dia, com ela, de amor e de uma imensa cumplicidade. Sei que me conhece como pai e também como pessoa. Não conseguiria suportar o arrependimento de saber que tendo essa possibilidade teria dado prioridade ao emprego, que hoje não tenho, em detrimento da qualidade da educação que sempre ambicionei dar aos meus filhos.

Agora emigro para lhes proporcionar o futuro que nos negam todos os dias por cá."

“As mulheres ficavam espantadas com a destreza com que eu mudava fraldas”

Rui Pinto de Almeida, 51 anos, produtor/realizador/documentarista

"Fui pai, pela primeira vez, há 27 anos. Os meus horários de trabalho eram muito variáveis e quase sempre entre as 16 e as 24 horas. A opção de tratar da Patrícia, em alternativa a colocá-la num berçário, constituiu uma das experiências mais intensas que vivi até hoje.

Foi tudo: as mudanças de fraldas, a introdução das sopas por mim feitas na alimentação, a carne, depois o peixe, as diferentes frutas, os banhos, a aprendizagem do bacio, as histórias contadas antes das sestas, as idas ao pediatra, as primeiras palavras, o gatinhar, os primeiros passos, as tentativas de calçar meias… Enfim, muitas memórias que agora, neste preciso momento, vêm ao presente. Foram dois anos e oito meses que calam fundo na minha memória afectiva.

Fi-lo por "gosto por acompanhar a paternidade"; por ser "demasiado pequena para ser entregue aos cuidados de terceiros"; por "conforto e protecção"; por "falta de instituições na época".

Morava na margem Sul, saíamos de casa, eu e a Patrícia, por volta das 15h20, chegava ao emprego por volta das 15h50. Estacionava o carro, e ela acompanhava-me, primeiro no berço, depois no carrinho, e posteriormente a pé, no meu emprego. Entre as 18h15 e as 19h a mãe vinha buscá-la e levava-a de carro para casa. Eu regressava de transportes públicos ou com uma boleia de colegas.

A entidade empregadora, ou chefias directas, nunca me colocou constrangimentos.

Os desafios: as crianças não nascem com manual de instruções, o que facilitava a vida aos pais... Mas com paciência, firmeza sempre que necessário, recordações da minha infância (curioso, mas foi nessa altura que comecei a recordar frequentemente a relação dos meus pais comigo: o que eles me faziam, as suas preocupações, a responsabilização pelos meus actos), muita brincadeira, e sobretudo um grande espanto pelas evoluções e aquisições que a Patrícia ia fazendo. Isso era formidável! Fazia com a Patrícia coisas que seriam hoje impossíveis, como andar de mota aos dois anos, por exemplo. Os nossos passeios de mota até à Costa da Caparica estão-lhe gravados na memória.

Os amigos achavam graça e sobretudo as mulheres ficavam espantadas com a destreza com que eu mudava fraldas ou fazia a comida ou a adormecia ao colo ou na sua cama.

A segunda filha, a Joana, agora com 22 anos, não teve tanto tempo comigo porque as minhas responsabilidades profissionais eram outras. Mas sempre que podia, tratava de estar o máximo tempo com ela, para as coisas práticas ou para os afectos.

Hoje, passaram quase três décadas. A nossa relação é uma relação normal de pai e filhas. Conheço a maior parte dos seus amigos/amigas, colegas de faculdade ou de emprego. Respeitamos a nossa esfera íntima, como sempre as habituei a respeitar. Nós sabemos/sentimos que os nossos abraços são especiais, que a diferença de opiniões não abala o vínculo, que a assertividade às vezes dói e que as comidinhas que lhes faço quando me visitam, ou que me fazem quando as visito, continuam a ser feitas com o maior carinho que nos podemos dar.

http://www.publico.pt/sociedade/noticia/sozinhos-em-casa-com-os-filhos-1573412#/0

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