sexta-feira, 6 de abril de 2012

i online: Analfabetos em saúde? Portugueses nem sempre entendem o que o médico diz

Dificuldades em perceber uma bula, o que diz o médico ou as desvantagens de um tratamento. Ter acesso a informação mas não conseguir avaliar se é credível. Não conseguir decidir quanto gelado deve comer, com base nos avisos – em medicalês – dados numa consulta e na informação no rótulo. Para os especialistas, é consensual que o conceito moderno de literacia implica não só perceber, mas também aplicar a informação e agir. Na área da Saúde, em qualquer orçamento, estes sintomas estão a agravar o problema: a iliteracia é grande. Está associada a mais doenças e a mais despesas.

Dados de um estudo de 2011 baseado em 8000 europeus revelam que 47% tem uma literacia problemática, em saúde . Destes, 50% estão reformados ou desempregados, 80% têm níveis de educação baixos e 75% consideram ter uma saúde má ou muito má, pelo que recorrem mais aos serviços de saúde.

Os dados foram apresentados, na semana passada, na primeira sessão pública do think tank “Saúde que Conta”, uma iniciativa da Escola Nacional de Saúde Pública com o apoio da Lilly Portugal. Por falta de verbas, Portugal não participou na primeira ronda de inquéritos do European Health Literacy Survey, que envolveu oito países. Constantino Sakellarides, coordenador científico do novo projecto, e ex-director geral de saúde entre 1997-99 (governo de António Guterres), lembrou que, na altura, seria preciso investir algumas dezenas de milhares de euros para iniciar as entrevistas – o montante não estava disponível o que demonstra que o problema não era uma “prioridade”.

Hoje em dia, a crise e as palavras mágicas “poupança no SNS”, fazem com que haja circunstância para se avançar. Nos próximos três anos o think tank pretende conhecer a dimensão da iliteracia em saúde, em Portugal; o impacto nos indicadores de doença e desenvolver uma estratégia para inverter a situação e dar mais capacidade aos portugueses para fazerem “escolhas mais inteligentes” nas decisões do dia-a-dia com impacto na saúde, ao mesmo tempo que apelam à mudança do próprio sistema: tem de deixar de se focar tanto nos serviços e nas “quintas” para passar a capacitar mais as pessoas, defende Sakellarides. “As estatísticas mostram que os portugueses vão em média quatro vezes ao médico por ano, o que, sendo generoso, dá duas horas. Comparando com o tempo que passamos a tomar decisões ligadas com a nossa saúde, a desproporção é enorme. Não podemos investir só nessas duas horas.”

Para o especialista, um exemplo da falta de atenção a este problema é o facto de os doentes saírem do médico com a informação de que “vão ser chamados para consulta”. Sakellarides diz que seria mais eficiente para o doente e para o sistema os médicos gastarem mais tempo a informar, para não terem depois de enviar cartas para casa.

Para já, o think tank tem um conjunto de ideias nas quais vai começar a trabalhar: níveis baixos de literacia em saúde levam a uma utilização menos eficiente dos serviços e menos cuidados preventivos. Em contrapartida geram mais hospitalizações, mais idas às urgências e um controlo deficiente das doenças crónicas. O impacto é maior, por exemplo, na morbilidade de doenças como a diabetes, hipertensão, obesidade e infecção por VIH/Sida – das que mais pesam no orçamento – porque os tratamentos não são cumpridos pelos doentes. Um estudo da Faculdade de Medicina de Lisboa e do Centro de Estudos Aplicados da Católica revelou, em 2011, que a diabetes tipo 2 – em que a prevenção é determinante – pode ser relacionada com 9 mil mortes anuais, 8,5% da mortalidade total do país. Estima-se que tenha custos directos e indirectos na ordem dos 952 milhões de euros, 5,5% das despesas em saúde.

Medir o problema A primeira ronda do European Health Literacy Survey, que envolveu oito países, concluiu que, embora em média haja uma incidência de níveis de iliteracia problemáticos em 47% da população, ainda há diferenças significativas. A Holanda teve o melhor desempenho, com apenas 36% da população avaliada como tendo níveis de literacia inadequados ou problemáticos. Os piores indicadores surgem na Bulgária onde dois terços da população tem incapacidades significativas. Sakellarides acredita que o cenário em Portugal deverá ser semelhante ao espanhol, a meio da tabela: 7,3% da população tem uma literacia em saúde inadequada e 29,5% problemática. Se aqui os estudos da literacia geral na população portuguesa poderiam servir de ponto de partida, os últimos dados já têm 14 anos, como alertou na apresentação a socióloga do ISCTE Patrícia Ávila. Embora a especialista acredite que hoje a realidade possa ser melhor, neste estudo com dados recolhidos em 1998 – no âmbito do projecto International Adult Literacy Survey (IALTS), coordenado pela OCDE – concluiu-se que o perfil dominante em Portugal era o nível 1 de literacia. “São pessoas cujas competências são de tal forma escassas que, quando muito, lhes permitem resolver apenas tarefas elementares de leitura, escrita e cálculo.” Juntando os inquiridos do nível 2, também com limitações, 80% da população nacional tinha níveis inadequados de literacia.

Ao i, Patrícia Ávila adiantou que Portugal estava a participar num novo estudo coordenado pela OCDE – Programme for the International Assessent of Adult Competencies –que permitia comparar a realidade actual com a de 1998. A participação foi interrompida quando ia começar a recolha de dados, no Verão do ano passado.

por onde começar? Kristine Sorensen, investigadora da Universidade de Maastricht e coordenadora do projecto europeu, defende que em vez de se começar a intervir junto do grupo com mais lacunas, a prioridade deve ser trabalhar sobre o grupo de pessoas que tem acesso a informação mas que ainda não está a agir, de modo a que consiga passar para o nível de quem já tem uma atitude pró-activa.

Para isso, defende, os serviços de saúde têm de facilitar o contacto – com incentivos à prevenção, consultas ao fim-de-semana ou virtuais. Grandes ferramentas, acredita esta especialista, poderão ser aplicações para telemóvel ou redes sociais, mas sobretudo é preciso aproximar os médicos das populações: sessões de esclarecimento em centros comerciais, informação de saúde em supermercados. Sakellarides concorda, até porque investir primeiro no “grupo do meio” vai permitir reduzir gastos e ter mais margem para investir nos grupos mais vulneráveis.

Na sessão pública, Isabel Loureiro, também da ENSP, propôs mais informação nos currículos escolares e formação aos futuros médicos para a necessidade de capacitar os doentes para as escolhas em saúde. Patrícia Ávila sugeriu aproveitar o Programa Nacional de Leitura ou as Novas Oportunidades.

Embora acredite que o sistema de saúde vai ter de mudar, Sakellarides defende que o processo será mais rápido se partir de uma cidadania mais activa, também na saúde. “Se as pessoas tiverem confiança na informação de saúde de que dispõem, podem exigir mais e melhores práticas. E também mais informação. Muda mais rapidamente do que aquilo que os governos possam fazer.”

http://www.ionline.pt/portugal/analfabetos-saude-portugueses-nem-sempre-entendem-medico-diz

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