sexta-feira, 4 de maio de 2012

i online: Alexandra Bento. “É quase um acto de negligência deixar sair os filhos de casa sem o pequeno-almoço”

A Ordem dos Nutricionistas tem uma bastonária em plenas funções desde sábado. Ao i diz quais são as mudanças que devíamos ter na alimentação, não só nos hábitos, como nas políticas. E desmitifica os excessos, mas deixa um alerta: temos de ter a consciência do que é uma alimentação regrada.

A primeira bastonária da Ordem dos Nutricionistas tomou posse sábado. Se fosse ministra, Alexandra Bento mexia nos currículos das escolas: menos nutrição e mais alimentação, quem sabe com aulas de cozinha. Se o objectivo principal do mandato é garantir uma melhor alimentação no país, um dos meios será o apertar do cerco às burlas no sector: profissionais sem habilitações, ou vão estudar ou só têm um caminho, deixar de exercer. A partir de agora estão sujeitos a processos-crime.

Vou começar por lhe perguntar o que é que almoçou...

Uma sopa de legumes, um peixe grelhado com batata cozida e legumes e terminei com uma laranja.

Segue sempre esta rotina?

Faço parte do grupo de pessoas que normalmente almoça e janta em casa. Em casa é sempre sopa, o prato e a peça de fruta. Quando é fora de casa, tento aproximar-me.

E sempre foi assim?

Sim. Sempre fui cautelosa com os meus hábitos. Hoje tento ser ainda mais, porque tenho filhos, de 16 e 11 anos. Não sou obstinada com as questões alimentares mas tendo fazer da alimentação uma rotina.

Há um excesso de informação sobre alimentação saudável? Só sobre dietas são 65 mil livros na Amazon e 6 mil na Wook.

Acho que temos de aumentar a literacia em termos alimentares e não em termos nutricionais. Para além de termos conhecimentos, temos de tomar a decisão de que queremos ter dias correctos em termos alimentares. Não precisamos de andar com um conta-calorias... Se não consigo organizar o meu dia alimentar, posso e devo procurar auxílio: para isso é que há nutricionistas. Temos a noção absoluta que só conseguimos ter um país com saúde se todas as partes estiverem envolvidas. A própria pessoa tem de querer mas tudo o resto tem de ser facilitador, seja nas empresas ou nas escolas.

Mas no meio de tanta informação, há informação contraditória... Devemos ou não beber leite em adultos?

Se pensamos só no leite pelo cálcio, temos de saber que podemos ir buscar cálcio a outros alimentos. Por exemplo à couve portuguesa. Mas na minha perspectiva devemos sempre beber leite. Tem proteínas de valor biológico e para além disso várias vitaminas, nomeadamente A e B.

Ser vegetariano é uma escolha saudável?

Ser vegetariano estrito é complicado sem recorrer a controlo e, porventura, a suplementos. Costumamos dizer que a alimentação ovo-lacto-vegeteriana dá alguma tranquilidade em termos de se saber que tem todos os nutrientes necessários.

E ser crudívoro, comer alimentos crus?

Há alimentos que se não forem confeccionados têm menos nutrientes disponíveis, caso da batata. Temos de pensar na nossa evolução como espécie: se houve uma evolução e se nos adaptámos a ela com sucesso, e que fez de nós seres superiores em relação a outras espécies, negá-lo é complicado.

Assustam-na estas tendências?

Tudo o que é pensamento e movimento baseado na evidência científica parece-me interessante. Com o que não é, respeitamos a escolha individual, mas o nosso papel deve ser o de alertar para os riscos.

Mas a própria evidência científica pode ser confusa...

A grande dificuldade é a passagem dos conceitos científicos para uma linguagem do dia-a-dia. E ter informação exequível no nosso dia alimentar. Cabe aos cientistas investigar e aos profissionais de saúde descodificar. Aqui também a Ordem dos Nutricionistas pode ser importante, porque uma profissão regulada exige padrões de maior rigor em termos de cientificidade. A ordem terá de criar guide-lines e obrigar os profissionais a seguir essas referências.

Falando das doses de comida, devemos comer quantidades do tamanho do nosso punho?

Na educação alimentar fazem-se muito esses modelos, sobretudo para crianças. Há vários modelos em que as medidas são desse género, a carne deve ser do tamanho da palma da mão, a batata média do tamanho do ovo. Os colegas que trabalham nas escolas usam esses modelos.

Não seria mais eficaz usá-los também com adultos em vez de falar de um tecto de 1500 ou 2 mil quilocalorias? Qual é a dose adequada de arroz num prato de um adulto?

Acredito que dizer 1500 kcal não diz nada a ninguém, mas para isso é que temos a roda dos alimentos, feita por nutricionistas portugueses e com porções, com doses mínimas e máximas consoante a actividade física da pessoa e que é preciso dividir pelas seis refeições ao longo dia. Basta fazer o download da internet. A dose vai depender da pessoa. Para mim, que tenho uma noção muito precisa e muito mental do meu dia alimentar, digo que são três colheres de sopa rasas de arroz.

Enchemos de mais os pratos das crianças?

Temos claramente um problema de quantidades, que também é visível na alimentação das crianças. Se não, não tínhamos os problemas de excesso de peso e obesidade. Metade dos adultos tem excesso de peso e nas crianças é uma em cada três. Temos basicamente dois problemas: quantidades excessivas nas refeições principais e omissões de refeições importantíssimas como as intercalares e o pequeno-almoço. Temos de passar a ter mensagens fortes. O pequeno-almoço é tomado na primeira hora do dia e em casa e é quase um acto de negligência deixar sair os filhos de casa sem pequeno-almoço. É uma grande negligência em termos educacionais.

No próximo ano será dado nas escolas, às crianças com dificuldades, mas este não é só um problema de famílias pobres...

Não tenho dados, mas penso que falhar o pequeno-almoço é transversal nas famílias com e sem recursos. É arrepiante sabermos que uma criança sai de casa sem tomá-lo, porque os pais não têm dinheiro. Aí o Estado pode substituir-se ao papel dos pais. Parece-me correcto numa situação de emergência.

E como vê os pais que dão dinheiro aos filhos para o lanche, em vez de o preparar?

Não há problemas, desde que saibam educar os filhos para o que devem escolher. Mas não se educa uma criança de um dia para o outro, não é de repente que uma criança está preparada para ter dinheiro no bolso para fazer as suas compras.

A publicidade é um inimigo?

Acho que precisa de maior regulação, mas também é importante as crianças aprenderem a descodificar a publicidade. É preciso explicar-lhes qual é o objectivo da publicidade, que é lícito: despertar em nós a vontade de consumir. Mas há publicidade enganosa que nem os adultos são capazes de descodificar.

Se fosse ministra…

Mexia logo no currículo. Explicava muito mais como ir ao supermercado, que alimentos comprar, como deve ser o dia alimentar, as questões da rotulagem e a confecção. Se pensamos na cozinha como laboratório, como fazemos na faculdade com os alunos de nutrição, deixa de ser algo redutor e desinteressante.

Comer bem parece fácil. Então porque estamos gordos?

Além de estarmos gordos vemos que as doenças de maior prevalência se relacionam com a comida. Obesidade, doenças cardiovasculares e as dislipidemias como o colesterol elevado. Hoje vemos que a obesidade está mais instalada nas classes sociais mais desfavorecidas, quando no passado era um problema das classes mais opulentas. Há dois motivos: a questão da literacia alimentar e depois a questão económica, precisamos de dinheiro para nos alimentarmos. Com menos dinheiro, compro alimentos com mais aporte calórico, um refrigerante e uma sandes, que podem ser uma bomba de calorias, mas em termos nutricionais são pobres. Não quer dizer que não posso alimentar-me bem a baixo custo, mas há pré-requisitos: a literacia e o segundo requisito é o querer.

E o tempo para cozinhar?

O tempo é uma má desculpa da nossa parte para não comermos bem.

Somos candidatos à UNESCO com a saudável dieta mediterrânea. Não é um pouco irónico termos este perfil alimentar?

Actualmente muitas das pessoas não seguem a dieta mediterrânica, mas não será legítimo voltarmos a implementá-la, se é um padrão reconhecido como promotor da saúde? É mais simples do que importar um padrão alimentar de outro espaço qualquer. Temos de começar uma mudança alimentar até porque se não o fizermos os custos na saúde vão ser uma catástrofe. Para pôr a população a comer melhor, temos de nos mobilizar todos. É o governo, a Ordem, as autarquias e as escolas. Neste momento há uma boa notícia que é o Programa Nacional da Alimentação Saudável. Quem de direito, o governo, tem descurado muito as questões alimentares. Nesta área tem-se feito muito pouco.

Tem-se descurado como?

Faltam nutricionistas nos centros de saúde, nas escolas, nos locais promotores de saúde. Não sendo exaustivos, falta um bom diagnóstico da situação. Se o tivéssemos era mais fácil desenhar medidas para o terreno, porque o país não é todo igual. Na escola, é preciso aumentar a literacia da população. E só vamos ver resultados daqui a dez ou 20 anos.

Que medidas são necessárias?

É preciso juntar os três ministérios que têm um papel nesta área: Saúde, Agricultura e Educação, mas até devíamos começar por saber como estamos a comer, com um novo inquérito alimentar nacional. O primeiro e último foi na década de 1980. Não fossem alguns estudos nacionais de investigadores não sabíamos o que os portugueses têm vindo a comer – e os estudos apontam erros alimentares tremendos.

O que pensa de taxar refrigerantes e alimentos com excesso de gordura?

Como medida avulsa, não me parece boa ideia. Receio que penalize mais quem os consome, a população desfavorecida. Não estou certa que seja o caminho.

Nas escolas, pode-se controlar o que os estudantes comem?

Precisamos de fiscalizar o que está a ser feito nas escolas. É preciso ver se os referenciais [para a alimentação nas cantinas] implementados em 2006 são oportunos e se estão a funcionar. Se a competição com os cafés é desleal, temos de pensar em como contrariar a tendência.

Uma ideia antes de proibir?

Se a cantina for desinteressante, se a decoração não for moderna, se os alunos não participarem no processo de decoração da cantina, é natural que não percebam a mensagem. Há que perguntar-lhes o que é um espaço interessante para comer.

Qual é o grande objectivo na Ordem?

Que todos tenham direito a uma alimentação adequada. Com mais nutricionistas a trabalhar em tudo o que são lugares que podem promover melhor saúde.

Há muitas burlas no sector?

Muitas. Dei-lhe o primeiro objectivo, termos direito a uma alimentação adequada. Um dos aspectos que o contraria são as burlas, em termos de falsos nutricionistas.

Falsos nutricionistas, falsas dietas, falsos produtos. Estamos habituados à ideia de que as dietas normalmente falham?

Sim, e é preciso combater a falsidade. Mas vai deixar de haver falsos nutricionistas. A Ordem é criada para defender o cidadão e vai defendê-lo contra os falsos profissionais. Até ao momento era relativamente fácil abrir um consultório e dizer que se é nutricionista. Agora não é assim e todos podem ver se o nutricionista ou dietista está registado no site da Ordem.

Já apanharam muitos falsos profissionais?

Apanharemos. A Ordem esteve em comissão instaladora desde 2010 e agora vamos começar esse trabalho.

E vai haver processos disciplinares?

Os processos disciplinares serão para os profissionais verdadeiros. Um falso profissional está sujeito a processo-crime. Quem se intitula nutricionista sem o ser deve ir para a universidade ou deixar a prática. Quem é membro da Ordem tem de trabalhar com referências elevadas. Quem não tem habilitações, não pode exercer. Se estiver a praticar ilegalmente, está a cometer um ou vários crimes.

Para terminar, o que seria agora um bom snack?

Depois desta conversa, estou cheia de forme. Um sumo de fruta e um pão com queijo, por exemplo.

E se fosse um bolo era um pastel de nata, sempre referido como uma das opções menos calóricas?

Para mim seria qualquer um. Não tenho excesso de peso, porque me acautelo. Tenho tendência para engordar como as restantes pessoas. Os factores hereditários podem ser importantes, mas acreditamos que o que tem mais peso são os factores ambientais. As pessoas, como me vêem como nutricionista e com liderança de opinião nesta área, pensam que é por sorte.

Mas nunca fez dieta?

Em bom rigor, não.

Nem no Natal engorda um quilo?

Claro, posso andar dois quilos para cima e para baixo. Mas o que digo é que ninguém aumenta cinco quilos de uma vez. Uma atitude de saúde é ter uma balança: se me pesar quinzenalmente não aumento cinco quilos. A roupa pode ser traiçoeira.

Portanto “portugueses comprem uma balança”, diz a bastonária...

E calçado confortável, para darem umas caminhadas.

http://www.ionline.pt/portugal/alexandra-bento-quase-acto-negligencia-deixar-sair-os-filhos-casa-sem-pequeno-almoco

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